3 de maio de 2008

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO ISABELA...

Independentemente da minha vontade, tenho acompanhado diariamente a evolução do espetáculo surreal apresentado em relação à morte trágica da menina Isabela Nardoni.

Digo independente da minha vontade porque mesmo que eu não deseje mais ouvir falar sobre este caso, mesmo que eu esteja mais interessado em outras informações sobre outros assuntos, o tema Isabela é despejado sobre mim de modo impiedoso e invasivo. E acredito que esta minha sensação de impotência em relação à mídia de massa e à (de)formação da opinião pública seja compartilhada por outras pessoas.

Tenho evitado escrever sobre este tema em meio ao calor da comoção pública nacional – denominação bombasticamente atribuída pela mídia para uma nação de mal informados ou de pessoas sem qualquer tipo de informação -, mas, como o assunto se arrasta, resolvi quebrar o silêncio.

Como todo ser humano, tenho minhas próprias opiniões acerca dos motivos e das circunstâncias que motivaram a morte da menina. Mas, como uma pessoa comum, é só isso que tenho: suposições, “achismos” e minha opinião pessoal. Essas poucas posses não me habilitam nem como perito ou psicólogo forense, nem como policial técnico, nem como promotor, nem como juiz, muito menos como dono da verdade.

Neste último mês, quase a totalidade dos meus alunos têm me procurado insistentemente, dentro e fora de sala de aula, ávidos por saber minha opinião pessoal sobre o caso e sobre as mais novas e espetaculares revelações sobre as investigações policiais e técnicas da ocasião. Muitos inclusive se revoltavam quando minha resposta se limitava à análise da legalidade e dos procedimentos legais envolvidos. Mesmo diante de uma pergunta direta acerca da minha opinião sobre a culpabilidade dos envolvidos no inquérito não revelava minha opinião pessoal sobre o caso. Agia assim porque me preocupava, já desde os primeiros momentos de enxurrada de cobertura jornalística sobre o caso, tanto com a influência que minha opinião poderia ter na formação da opinião dos meus alunos.

Confesso que, após a primeira semana, quando já começava a me enojar com a exploração midiática e, em certos casos, pessoal da morte da menina, deixava de dar minha opinião aos meus alunos também em função de já não agüentar mais a conversa monotemática de toda a gente, como se a vida brasileira e mundial tivesse ficado em suspensão até que se resolva este caso.

E olhe que eu não sou um veículo de comunicação de massa. Não tenho, nem de longe, o poder de difundir uma informação a milhões de pessoas indistintamente, nem de formar uma opinião de massa em segundos.

Com o passar dos dias e com o meu afastamento voluntário do calor da auto-proclamada “comoção nacional”, passei a analisar o fenômeno como um todo, à parte da questão do crime cometida contra a menor. Algumas considerações me acompanharam por um bom tempo e a própria mídia me auxiliou com elas, provando sua absoluta falta de escrúpulos e a inversão de valores que impera nesta terra de Pindorama já há muitas décadas. Quero dividi-las com vocês, a título inclusive de provocação:

1) Por que será que a patuléia ensandecida que montou vigília na frente da delegacia e dos imóveis da família Nardoni e Jatobá, aos berros de “Justiça!”, “Assassinos!” e demais impropérios que não convém mencionar aqui, muitos inclusive se deslocando de outras cidades ou faltando ao compromisso do trabalho, não têm a mesma atitude de indignação em frente ao Congresso Nacional ou ao Palácio Bandeirantes ou, ainda à Câmara de Vereadores de sua cidade, em relação à inação das autoridades públicas em relação à violação de direitos e à exclusão social que atira a sociedade brasileira diariamente em um abismo sem volta?

2) Por que será que a fúria social demonstrada pela turba desocupada, em mobilização organizada (tanto que as autoridades municipais chegaram a instalar banheiros químicos nas imediações das residências Nardoni e Jatobá, e a desviar trânsito de diversas ruas próximas) e com cobertura midiática ampla e demorada, não é vista também em relação à morte diária de centenas de crianças pobres vitimadas pela violência doméstica, pela violência sexual, pelo descaso parental e das autoridades públicas, por diarréia (por falta de água tratada), de fome, de dengue etc.?

3) Por que será que uma única rede de televisão tem acesso exclusivo a informações de laudos ainda em elaboração, depoimentos e outros dados de um inquérito que, se bem me lembro, passou a correr em sigilo desde os seus primeiros dias justamente para evitar comoção pública?

4) Por que será que se fala há um mês sem parar e de forma ostensiva no caso Isabela e não se comenta com a mesma ênfase o caso, por exemplo, da violência em Recife – PE, onde em quatro meses morreram 1.500 pessoas (o mesmo número de assassinatos na cidade de São Paulo no ano de 2007 inteiro!), ou no confronto entre as autoridades federais, índios e rizicultores em Rondônia, dentre outros assuntos que assolam o país e têm reflexo direto e profundo na vida de todos?

5) Já que, além de um país de 180 milhões de técnicos de futebol e ministros da economia, nos tornamos um país de 180 milhões de peritos forenses (as vendas dos boxes do CSI devem ter explodido no último mês!), talvez possamos deixar, em breve, a triste taxa de 90% de crimes não resolvidos pela polícia.

6) Já que a sociedade está embuída do espírito da “justiça” e da proteção das crianças, dos anjinhos desprotegidos, em que pé está o caso daquele rapaz de classe média alta, filho de uma advogada, indiciado pelo estupro de uma menina que fazia malabares em um farol da cidade de São Paulo? E o caso João Hélio, como vai? E o caso das quatro crianças que comeram um bolo envenenado, deixado na soleira da porta de sua casa?

7) Será que as pessoas que, na data do aniversário da falecida Isabela, levaram um bolo para a porta da delegacia em “comemoração” ao natalício da coitada, fazem ao menos um pão com manteiga para as crianças que moram na calçada de suas casas ou para o aniversário do filho da faxineira de suas casas?

8) Por que será que a mídia de massa não incendeia e mobiliza as pessoas (com seu jeito bem peculiar) a exercerem seus direitos, a assumirem suas responsabilidades e, sobretudo, a fiscalizar e protestar em relação à exclusão social, à escravidão, à exploração sexual, à exploração do consumo, aos juros altos etc., etc., etc.?

Na verdade, uma das coisas que ficam mais evidentes com a passagem do caso Isabela é a manipulação e a hipocrisia. Manipulação por parte da mídia, que lucra com seus picos de audiência em função de revelações bombásticas e/ou exclusivas em relação ao caso e à culpa dos indiciados. E a hipocrisia da nossa sociedade, não da patuléia, da massa manobrada, porque esta, coitada, não tem mais como se defender deste tipo de prática, mas das pessoas que deveria se manifestar em relação à manipulação, à exploração da desgraça alheia, ao desvio de atenção dos assuntos que realmente importam, dos crimes verdadeiramente importantes que assolam este país: a privatização do espaço público, a desfaçatez da ausência de políticas públicas efetivas, o esvaziamento das CPI’s dos cartões corporativos e das ONG’s, dentre outros.

Me espanta que a maioria da mídia(excessão honrosa ao site Observatório da Mídia e a algumas poucas vozes isoladas, até onde é de meu conhecimento), tenha levantado um dedo ou proferido uma única palavra de crítica à postura das redes de rádio e televisão, ou contra a cobertura dos jornais, ou em relação ao pré-julgamento feito pelas autoridades públicas e seus egos afagados pelos holofotes da mídia. Enquanto isso, em Brasília......dezenove horas!

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